José Fernando Nandé
I. Introdução
Há a discussão entre acadêmicos brasileiros que versa sobre o uso das palavras latinas campus, campi. De acordo com alguns autores e, agora, consultores da lusitana língua, esses vocábulos deveriam ser substituídos
pela palavra “câmpus” – ou “campus” apenas – tanto no singular quanto
no plural. Tal discussão seria no sentido de trazer para o vernáculo uma
palavra supostamente derivada das suas correspondentes latinas campus et campi, hodiernamente
usadas no Brasil para designar o território, ou espaço, ocupado por
instalação ou instalações físicas de universidades.
Este artigo sustenta que tal discussão é inócua, posto que o nome campus de há muito consta incorporado ao nosso idioma e corresponde ao substantivo campo e respectivo plural campos. Portanto, a posteriori
deve-se demonstrar que a tentativa em curso de aportuguesamento de tal
palavra está mais próxima de uma aberração linguística do que um
acréscimo positivo à língua portuguesa e tudo por obra do equivocado e
bárbaro marketing dos manuais de redação dos jornais.
II. O significado de campus
O uso do vocábulo campus, em
latim, perde-se na noite do tempo. De possível origem grega, ele
aparece em vários textos anteriores ao período Clássico inclusive,
depois resiste aos períodos subsequentes da língua latina até o
amanhecer no idioma português, inculto e belo, sempre com o mesmo
sentido original, determinando um lugar, ou território, ou espaço, em
perfeito acordo com os significados atribuídos a este verbete desde que
ele é registrado pelos dicionários latinos:
Cāmpŭs, is
– jardim, vergel, campo. 1º planície, plaino; campina cultivada, campo,
veiga, terreno; produto da terra; 2º superfície igual, lisa, plana; 3º
território; 4º Campo de Marte (em Roma), exercícios do Campo de Marte,
comícios, assembleias do povo, votações, eleições; 5º campo da batalha,
campo, liça, luta, contenda, curso, carreira.
Algumas citações clássicas para campus:
1 – Campos et montes peragrare (M. T. Cicero, 106 a.C – 43 a.C). Percorrer as planícies e os montes. [Dictionnaire Français-Latin, p. 143; 1868].
2 – Pingues Asiae campi (Q. Horatius Flaccus, 65 a.C e 8 a.C ). As férteis campinas da Ásia. [CHARLESWORTH, 1970].
3 – Coerulei campi (T. M. Plautus, 230 a.C – 180 a.C). As planícies azuladas (o mar). [Dictionnaire Français-Latin, p. 143; 1868].
4 – Attollitur unda campus (Publius Vergilius Maro, 65 a.C – 8 a.C) A planura (do rochedo) eleva-se acima das ondas. [P. Virgilii Maronis Opera omnia ex editione Heyniana, p. 731, 2V; 1819].
5 – Campus in quo exsultare possit oratio (M. T. Cicero, 106 a.C – 43 a.C). Campo (assunto) em que a eloquência possa desenvolver-se. [Dictionnaire Français-Latin, p. 143; 1868].
6 –Flubius
que irrigat Cordoba, qui dicitur Bete, nascitur in campo Spanie et
cadit in mare in oceanum ocidentale; currit milia cccxii. (Nominia Flubiorum,
autor desconhecido, por volta de 800 d.C). “O rio que irriga Córdova,
que se denomina Bétis, nasce num planície da Espanha e cai no mar no
oceano ocidental, corre 412 mil passos.” [FURLAN, p. 308. 2006].
Pelo exposto, nota-se que os escritores latinos situavam campus na segunda declinação, pois esta palavra tem seu genitivo em i.
III. A declinação de campus e o acusativo como caso lexogênico da língua portuguesa
Caso
|
Singular
|
Plural
|
Nominativo
|
campus
|
campi
|
Vocativo
|
campe
|
campi
|
Genitivo
|
campi
|
camporum
|
Dativo
|
campo
|
campis
|
Ablativo
|
campo
|
campis
|
Acusativo
|
campum
|
campos
|
Para efeito desta exposição e de clareza, citemos o seguinte exemplo tirado à segunda declinação, o nome próprio masculino Candidus, i:
Caso
|
Singular
|
Plural
|
Nominativo
|
Candidus
|
Candidi
|
Vocativo
|
Candide
|
Candidi
|
Genitivo
|
Candidi
|
Candidorum
|
Dativo
|
Candido
|
Candidis
|
Ablativo
|
Candido
|
Candidis
|
Acusativo
|
Candidum
|
Candidos
|
Por último, e para os mesmos efeitos, o nome feminino universitas, atis (3ª declinação):
Caso
|
Singular
|
Plural
|
Nominativo
|
universitas
|
universitates
|
Vocativo
|
universitas
|
universitates
|
Genitivo
|
universitatis
|
universitatum
|
Dativo
|
universitati
|
universitatibus
|
Ablativo
|
universitate
|
universitatibus
|
Acusativo
|
universitatem
|
universitates
|
Devidamente declinadas, é possível verificar que essas palavras chegam
ao português por meio do modo latino acusativo. “Cedo o latim vulgar
reduziu esse sistema de desinências (morfemas) de seis casos a apenas
um. (...) Na Península Ibérica, os nomes se fixaram nas do acusativo (o
do objeto direto). Por isso este se diz caso lexogênico do português (e do espanhol)” [FURLAN, 2006; p. 322].
Nesse ponto não há divergência entre os gramáticos. O que foi explicado
pelo professor Oswaldo Antônio Furlan é praticamente o mesmo que é
observado pelo professor Napoleão Mendes de Almeida, em sua Gramática
Latina: “O acusativo, que é para o português o caso lexicogênico, isto é, o caso de que provieram os nossos vocábulos, termina geralmente em m no singular das cinco declinações. (...) O acusativo plural das cinco declinações termina em s (Por esse motivo é que o plural das palavras portuguesas termina em s)” [2000, p.89].
Logo, ao se colimar a regra geral tendo como parâmetros os casos particulares, em português Candidus fica Cândido/Cândidos e campus fica campo/campos (segunda declinação). Universitas, universidade/universidades (terceira declinação).
Mas essa explicação ainda não é a bastante, porque são tantas as
distorções nesse assunto, que ele tem que ser dilatado para o campo da
Filosofia, precisamente ao campo da Lógica. Sabemos que a escrita é o
sinal da palavra e, por meio dela, o da ideia. Porquanto se faz mister,
para o saneamento de todas as dúvidas, a busca pela ideia representativa
da palavra campus. Pelas definições dos dicionários verifica-se que ideia geral para campus é lugar (território), locus ou topus (topos,
grego). Em latim e no português, assim como em outras línguas, a ideia
geral expressa pela palavra pode ser particularizada, para isso basta
que a ela se juntem outros complementos que imprimam à palavra dada uma
restrição ou uma qualidade distintiva. Ou seja, o adjunto adnominal restritivo, em português, ou o modo genitivo, em latim.
Assim, podemos dizer que “O pensamento de Cândido” carrega a ideia geral
de “pensamento”, que é particularizada pelo complemento “de Cândido”,
que não é Pedro nem João. Em latim, sensus Candidi (Candidi sensus) – sensus no nominativo e Candidi no genitivo.
Igualmente, a palavra campo guarda a ideia geral de lugar ou território: universitatis campus, campo da universidade; universitatis campi et universitatum campi, campos da universidade e campos das universidades.
Portanto:
Campus da universidade pode ser aportuguesado tranquilamente: Campo da universidade, ou Campos da universidade; ou pela qualidade, campo universitário ou campos universitários.
É o que aconteceu, no português, por exemplo, nos seguintes casos: Campo
de Marte; campo de futebol, campo elétrico, campo magnético, campo de
estudos, campo de batalha, campo de ação, campo de equitação, campo de
força etc.
IV. Há séculos que a ideia campus está incorporada à língua portuguesa
A discussão terminaria no tópico anterior, caso não fossem as
insistências de manuais de redações e acadêmicos, que tentam dar uma
nova grafia para esses velhos vocábulos que, por séculos, figuram na
língua portuguesa.
Vamos dar um pequeno salto neste estudo até alcançar Luiz Vaz de Camões
(1524-1580), que no Século XVI forneceu ao idioma lusitano a sua mais
sublime obra, Os Lusíadas, publicado em 1572. Examinem o uso da palavra campo nas seguintes oitavas:
“Da Lua os claros raios rutilavam
Pelas argênteas ondas Neptuninas,
As estrelas os Céus acompanhavam,
Qual campo revestido de boninas;
Os furiosos ventos repousavam
Pelas covas escuras peregrinas;
Porém da armada a gente vigiava,
Como por longo tempo costumava.” (Canto I, 58)
"Este, despois, em campo se apresenta,
Vencedor forte e intrépido, ao possante
Rei de Cambaia e a vista lhe amedrenta
Da fera multidão quadrupedante.
Não menos suas terras mal sustenta
O Hidalcão, do braço triunfante
Que castigando vai Dabul na costa;
Nem lhe escapou Pondá, no sertão posta.” (Canto X, 72).
Notem que, ao mesmo tempo em que campo passa para o domínio da
literatura portuguesa e do vulgo letrado ou iletrado, o vocábulo latino
de origem, ou seja campus, fica restrito aos círculos acadêmicos, determinando o locus, ou topus,
da universidade, ou seja, sua localização física dentro de um espaço
específico. Coimbra, a primeira universidade portuguesa (1290), ainda
hoje dá o nome campus para o
espaço físico ocupado pela totalidade de suas faculdades, que estão
agrupadas em polos. Tal fato pode ser explicado, posto que, nos sete
séculos de existência de Coimbra, em boa parte deles a língua acadêmica
foi o latim, assim como em outras universidades da Europa. Para resumir,
por séculos, o latim foi adotado pelas universidades como um sistema
linguístico e não como uma língua disponível apenas para o fornecimento
esporádico de palavras e expressões avulsas.
A Universidade Toulouse (1229) registra a vida no campus em sua página da internet no informativo “La vie du campus”. Outra universidade francesa, a de Paris (1170), igualmente se utiliza da palavra campus.
Em Espanha, não é diferente, as tradicionais universidades de Salamanca
(1218) e Valência (1499) se identificam a partir de um campus.
Na Itália, a mais antiga universidade do mundo, Bolonha (1088), está
identificada sob seu aspecto moderno, além-fronteiras, ao mostrar sua
grandiosidade no uso de “multicampus”.
Ora, temos aí a tradição supranacional no uso da palavra latina campus e a prova de que o latim ainda influencia a linguagem acadêmica, mesmo depois de não contar mais com o status
de língua oficial das universidades, dos acadêmicos, mestres e
doutores, enfim, das ciências. Desconhecemos universidades tradicionais
que não tenham ab ovo em seus brasões lemas em latim: Dominus Illuminatio Mea – O Senhor é a minha luz – Oxford University (Reino Unido). Veritas Christo et Ecclesiae – A verdade de Cristo e da Igreja – Harvard University (EUA, 1636). Hic et ubique terrarum – Aqui e em todo o mundo – Universidade de Paris (Universitas magistrorum et scholarium Parisiensis, nome oficial em latim). Scientia et Labor – Ciência e trabalho – Universidade Federal do Paraná (UFPR). Scientia Vinces –Vencerás pela Ciência – Universidade de São Paulo, USP (1934).
Aqui cabe uma observação importante no sentido de desfazer a hipótese de que o vocábulo campus deu um “passeio” pela língua inglesa. De acordo com essa hipótese, Campus
teria frequentado as universidades do Reino Unido e da América do Norte
e somente depois disso retornaria às línguas portuguesa, galega,
francesa, espanhola e italiana para identificar o espaço físico ocupado
por uma universidade. Pois bem, isso nos parece improvável ao se
considerar uma linha do tempo.
Os falantes da língua inglesa incorporaram a palavra campus
ao idioma da mesma forma pela qual ela foi incorporada pelos reinos da
Europa continental (sobremodo pelos países que têm sua língua originada
no latim, em especial os da Península Ibérica: Portugal e Espanha). O
latim foi usado desde a fundação das primeiras universidades – e assim
deveria ser – igualmente na Inglaterra e depois nos EUA como língua da
ciência desenvolvida nessas instituições. Citemos apenas uma prova disso
e será o suficiente: Principia Mathematica,
obra máxima do físico, filósofo e matemático Isaac Newton, publicada no
ano de 1687, no mais puro latim, quase seis séculos depois da fundação
das primeiras universidades.
No Brasil, são tardias as faculdades e universidades: Século XIX, as
faculdades de Medicina, Bahia e Rio de Janeiro, em 1808; e no Século XX,
a partir da Universidade Federal do Paraná, 1912. Desde o começo, nosso
ensino superior seguiu a tradição imposta pela cultura acadêmica
europeia, sobremodo a portuguesa (no ensino de Medicina, Direito,
Filosofia e Teologia, principalmente). Portanto, ao adotar o modelo
europeu de ensino, o latim chega ao Brasil como língua natural das
faculdades e universidades, com toda a carga sócio-cultural que isso
significava e com a apropriação de uma cultura milenar. Portanto, ao se
usar campus et campi, nada
mais se faz do que dar continuidade à tradição acadêmica de novecentos
anos, não constituindo esse uso uma agressão ao vernáculo nacional, mas
deferência à primeira língua utilizada na era cristã para tirar o homem
da ignorância.
Entretanto, em artigo, a professora Maria Helena de Moura Neves sustenta:
“Outro dado histórico importante, no caso
dessa palavra, é que, embora sua forma seja latina, a fonte da
importação foi o inglês, e não o latim, do mesmo modo que ocorreu, por
exemplo, com a palavra bônus
. O inglês, que não é uma língua latina, frequentemente vai buscar
palavras no latim para denominação de coisa novas , e as vai buscar no
nominativo, o caso em que a palavra aparece no dicionário, já que se
trata de um empréstimo, e não de uma derivação histórica, que tem
procedimentos naturalmente instituídos no próprio processo (por exemplo,
o caso lexicogênico , para o italiano, foi o nominativo, e, para nós,
foi o acusativo).”
Pelo exposto até agora, é evidente que não concordamos com a professora.
Mas, para efeito de argumentação, vamos dar razão a essa hipótese de
importação para a palavra “campus” do inglês. Verifiquem os seguintes pontos:
Primus: não houve mudança no significado da palavra campus, tanto no latim quanto no português, ela indica lugar, ou território e, no caso, da universidade, ipsis verbis.
Secundus: a palavra universidade é a que foi modificada. Ela é tão antiga quanto campus no latim, mas não com o significado que tem agora, o de universidade propriamente dita. Ela deriva do adjetivo universus, a, um (unus et vertere): todo, toda terra, o mundo inteiro. Universitas, atis é feminina e significa universidade, totalidade, o todo; companhia, corporação, comunidade, colégio, associação, sociedade. Universitas generus humanus – O gênero humano todo (Cícero).
Tertius: campus veio para o português como campo e significando lugar ou território; logo, com esse significado, usa-se sempre no aportuguesamento de campus o seu caso lexogênico, que é o acusativo.
Quartus: caso esta
hipótese da “importação” do inglês estivesse correta, vejam que teríamos
mais confusões. Pois, “câmpus de futebol” ou “câmpus eletromagnético”
poderiam assim ser grafados em nosso idioma, já que essas expressões não
existiam em Roma e nos foram apresentadas há menos de dois séculos e aí
sim, a partir do inglês: field (pitch); electro-magnetic field. É notável que a situação se nos apresenta ainda mais complicada à medida que descobrimos outros exemplos: concentration camp, refugee camp – “câmpus de concentração”; “câmpus de refugiados”, seriam expressões possíveis a partir da hipótese da importação de campus do inglês.
Quintus: Definitivamente, campus
da universidade se refere ao espaço ocupado por ela dentro de um
território e não somente ao seu mobiliário ou a seus prédios, assim como
campo de batalha refere-se ao território próprio para uma contenda e
não especificamente ao armamento, soldados etc, que fazem parte do
conjunto do teatro de operações bélicas. Campo de futebol se refere ao
território delimitado onde o jogo se pratica e não especificamente aos
jogadores, torcedores, vestiários etc.
V. Das comparações impróprias
Novamente poderíamos encerrar este artigo no parágrafo anterior, mas
vamos adiante. Respeitosamente, temos que discordar novamente da
professora Maria Helena de Moura Neves, que sustenta ao apresentar a grafia “câmpus”:
“Segundo as regras oficiais de
acentuação, o acento circunflexo é o sinal necessário para indicar que
se trata de palavra paroxítona, já que as palavras portuguesas
terminadas em -u (s) não-acentuadas são oxítonas. A partir daí, o plural é câmpus , igual ao singular (como bônus , íctus , vírus).”
A palavra virus pertence à
segunda declinação latina e significava originalmente veneno, peçonha,
suco, humor, essência, droga ou sêmen, no caso de animais. Hoje, vírus
serve para identificar, na Biologia, pequenos agentes infecciosos
compostos pelos ácidos nucleicos DNA ou RNA – por essa natureza, os
cientistas ainda se debatem na classificação exata do “ente” vírus no
Reino Animal ou fora dele. Na Informática, o vírus também é conhecido
pelo seu lado “venenoso”, pois é um software malicioso feito para infectar computadores.
Com efeito, vírus serve para definir tudo isso, mas jamais terá serventia como paradigma na conversão de campus
para “câmpus”. Em latim, os muitos nomes terminados em “us” (são
femininos na segunda declinação) têm três e somente três exceções como
neutros e, ao mesmo tempo, defectivos: virus, pelagus (mar) e vulgus (vulgo). Então, encontramos alguns impeditivos para a comparação entre campus et virus na tentativa de justificar a suposta existência de “câmpus”.
Declinando a pala virus, i:
Caso
|
Singular
|
Plural
|
Nominativo
|
virus
|
Não existe
|
Vocativo
|
vire
|
Não existe
|
Genitivo
|
viri
|
Não existe
|
Dativo
|
viro
|
Não existe
|
Ablativo
|
viro
|
Não existe
|
Acusativo
|
virum
|
Não existe
|
Perguntas:
Prima: em latim, pode um nome (substantivo) neutro ser paradigma de um nome masculino, mesmo que da mesma declinação?
Secunda: o português tem palavras neutras?
Tertia: em latim, pode um nome (substantivo) defectivo, que só existe no singular, ser paradigma de um nome que se flexiona em número?
Quarta: pode um nome
que não tem o acusativo plural ser comparado com um nome que possui os
dois acusativos e que, portanto, conta com as condições para ser
aportuguesado por meio desse caso e de forma direta?
Quinta: pode em lógica a parte ser maior do que o todo e no português e latim, a regra de exceção abranger a regra geral?
Sexta: é o inglês o idioma que deu origem ao português?
VI. Da “autoridade” linguística dos manuais de redação e jornais
No Brasil, infelizmente, ainda se usa per fas et per nefas
o método da autoridade em oposição ao método científico. Assim, ao
vulgo, o grito discordante de um redator de jornal, numa tarde de vento,
é bastante para uma nova regra dada à língua ou a quaisquer outras
coisas. – Socorro! – Desse alarde em diante será apenas uma propagação
de erros constantes. E aos entorpecidos pelos juízos ligeiros, tais
regras irão fazer o mesmo efeito da luz para os que estão perdidos no
talvegue das sombras ou trarão a mesma consequência da fé para os
arruinados no umbroso vale da morte.
Mas não se desesperem, porque a Lógica nos socorre no velho silogismo:
toda autoridade é humana e o homem é falível; logo, a autoridade, mesmo
de grande valor intelectual e de moral inquestionável, pode falhar ao
determinar uma verdade doutrinária, caso não se dobre ao método
científico, que procede por demonstração e recorre ao processo da
evidência intrínseca.
“O mestre o diz”, repetiam os discípulos de Pitágoras ao tentarem provar
suas doutrinas e com isso estavam contentes. Grande foi Pitágoras,
porém pequeno o método de seus discípulos. Método do “Amém” que, se
continuado, conduziria certamente à estagnação da ciência, conferindo a
autoridades humanas uma infalibilidade que elas não têm. “O apelo à
autoridade só pode intervir, em resumo, para guiar a indagação ou
confirmar asserções demonstradas segundo as exigências científicas.
Vê-se, assim, que o argumento da autoridade é, conforme a expressão de
Santo Tomás, ‘o mais fraco dos argumentos’.” [Jolivet, p. 143; 1969].
Dessa forma, “o mestre o diz”, são elaborados os manuais de redação.
Numa penada, os redatores desses manuais simplesmente nos mandam
esquecer a anciã língua latina e carpir nossa lusitana língua condenada à
morte por maus-tratos diários nas páginas da soberba imprensa.
“Câmpus. Aportuguesando: o câmpus, os câmpus” (sic, Manual de Redação e Estilo do Estado de S. Paulo, p. 118). Assim, ex cathedra,
sentado na cadeira de São Pedro, o autor do Manual dá seu veredito, sem
mais explicações. É a divina palavra aos sectários da infalibilidade
das cartilhas. Na edição disponível na internet, o manual da Folha de
São Paulo é mais sintético ainda: “campus (lat.)”, ou seja, a Folha
manda simplesmente grafar campus, sem distinção entre sigular, plural e explicação alguma ao que classifica de estrangeirismo.
O pior é que a coisa não termina por aí. A moda dos manuais de redação, movida por apelos de marketing,
se espalha pelo Brasil e cada periódico resolve construir a própria
gramática. Embora feitas para o consumo interno dos jornais, rádios, TV e
internet – repórteres, redatores e editores – essas “gramáticas”
tornam-se livros de cabeceira de estudantes que se contentam com o
“prato feito” em prejuízo do estudo elaborado, com base na razão e não
somente no falar ex professo.
VII – “Câmpus” em vez de campus, uma questão de marketing
Ab initio verificamos que as
grafias “câmpus/campus” não se justificam no português e muito menos no
latim. Mas, nisso tudo há um fato e pelo menos uma pergunta. Fato: as
grafias campus et campi
estão sendo alteradas inopinadamente por várias instituições de ensino
brasileiras, às vezes por “câmpus” (doutrina do Jornal Estado de S.
Paulo) e outras por “campus” (doutrina da Folha de S. Paulo). Pergunta:
qual é a razão de tanto esforço para se escrever fora dos padrões de
nossa língua? Para responder vamos recorrer aos jornais, raízes do
problema, ao insistirem nessas grafias equivocadas.
Os manuais de redação começam no Brasil
como normas de estilo e gramática e, com o decorrer do tempo, passam a
ser o lugar de apresentação da postura ética das empresas jornalísticas,
bem como dos modos de fazer jornalismo. A preocupação dos jornais, ao
produzirem seus manuais, não poderia deixar de ser outra: sua relação
com o leitor. Há uma preocupação didática com a audiência. Ela está
vinculada a uma das funções centrais do jornalismo: a pedagógica.
(VIZEU; CORREIA, 2007).
Ora, se um manual de redação expressa a “preocupação” dos jornais com o
leitor – e até onde se sabe é o leitor quem compra os jornais – haverá
também “preocupações” do capitalista, o dono do jornal, que se estendem
ao mercado e a imagem do produto neste mercado. Como há uma guerra
constante dos jornais em busca de leitores-consumidores, o manual de
redação, vendido como “apresentação de postura ética da empresa
jornalística", passa também a ser um argumento de vendas, ou produto
para o marketing empresarial.
Em outras palavras, na guerra de marketing,
os jornais usam seus manuais de redação para convencer o leitor
(leia-se consumidor) de que em suas páginas está o melhor produto,
elaborado com os melhores ingredientes “inteligíveis” para quem tem uma
educação mediana e precisa consumir informação de forma rápida, sem
pensar muito no significado das palavras, em semânticas e sintaxes.
Portanto, à medida que o apelo comercial se intensifica, ao se oferecer
facilidades aos leitores, os jornais padronizam a linguagem de acordo
com os parâmetros obtidos em pesquisas de mercado, traduzidos pelo
“perfil do leitor”.
É outro fato que esse leitor não estudou latim, porque as escolas não
ensinam mais latim. Logo, dentro da função central do jornalismo que é a
“pedagógica”, usar termos latinos foge totalmente da “didática com a
audiência”, pois essa didática pretensamente ética passa pela
simplificação da linguagem, mesmo que para isso se tenha que abrir mão
de algumas regras e padronizações da língua portuguesa. Em resumo, um
texto fácil, mesmo que pobre e defeituoso, atrai leitores, melhora a
audiência, e faz vender mais. Esse é o espírito, essa é a miséria.
VIII – Campus em vez de ager, uma questão ideológica
A propósito, já que estudamos o emprego da palavra campo,
é bom que se diga que ela também sofre “pressões ideológicas”
encampadas pelos jornais quando se refere às coisas próprias da
agricultura ou da pecuária. Voltemos ao registro de campus no dicionário, especificamente do registro 4 em diante. Na época de Cícero, a palavra campus,
por redução, era praticamente sinônima da expressão Campo de Marte e
por extensão, para tudo que podia ser realizado naquele espaço, desde
assembleias do povo, que definiam a carreira política de um jovem
tribuno, ou até uma luta ou contenda. Hoje, nesses significados, é
lógico que o verbete campus
está fora de uso. Entretanto, esse processo reducionista apontado para
Campo de Marte se repete em nossos dias com a tentativa dos meios de
comunicação de transformar campos no sinônimo geral de agricultura,
agropecuária e tudo que faz parte desse universo. Para tal, igualam campus ao nome ager, agri – campo, terreno cultivado, o campo e não a cidade – ou ao adjetivo agrarius, a, um – do campo, rural.
Desde o Brasil colônia e até nossos dias, caso se consultem os livros e
periódicos correspondentes a este período, verifica-se que a palavra
campo sempre guardou seu significado geral de lugar, espaço ou
território. Mas ao mesmo tempo, e com intensidade a partir da
industrialização e consequente urbanização, ou seja, a partir da
República Burguesa – na interpretação de Caio Prado Júnior – as
correntes de transmissão do pensamento da nova elite social brasileira
passaram a usar e abusar da palavra campo como qualitativa das coisas e
pessoas que compõem o espaço agrícola, na tentativa de explicar este
Brasil, que assumia suas feições urbanas, em nova realidade, inclusive
para aqueles brasileiros inicialmente radicados em ambiente rural. A
revolução burguesa do final do século XIX e início do século XX, que se
aproveitava de uma mão-de-obra “vadia” do final do regime servil, também
iniciaria assim o processo de redefinição de significados de palavras
para explicar o novo statu quo e para mascarar problemas sociais existentes.
Nesse sentido, na década de 1970 o matiz ideológico do “homem do campo”
foi cantado e massificado pela dupla sertaneja Dom & Ravel,
estigmatizada por suposto apoio à Ditadura Militar:
“Obrigado ao homem do campo
O boiadeiro e o lavrador
O patrão que dirige a fazenda
O irmão que dirige o trator (...)”
É evidente que na música, esse “homem do campo” não tem um perfil
específico ou particular, podendo significar latifundiário, pecuarista,
pequeno produtor, meeiro, colono, ou trabalhador volante (boia-fria). E
de maneira similar, campo também abrange conceito de território rural,
porém sem quantificá-lo, podendo ser uma grande fazenda ou latifúndio,
um pequeno sítio, uma chácara, ou qualquer ambiente fora das franjas
urbanas. Em consequência, produtos do campo surgem como resultado da
produção agroindustrial que não questiona o método de produção em todas
as suas vertentes: econômica, de saúde, ou de proteção ao meio ambiente:
“Obrigado ao homem do campo
Pelo leite o café e o pão
Deus abençoe os frascos que fazem
O suado cultivo do chão
Obrigado ao homem do campo
Pela carne, o arroz e feijão
Os legumes, verduras e frutas
E as ervas do nosso sertão
Obrigado ao homem do campo
Pela madeira da construção
Pelo cocho de fios das roupas
Que agasalham a nossa nação
Pelo cocho de fios das roupas
Que agasalham a nossa nação (...)”
Essa artificialidade da palavra “campo”, hoje reproduzida pelos meios de
comunicação para descrever a realidade do espaço agrícola moderno, pode
ser verificada com certa facilidade, pois o campo como ideia das elites
urbanas não é o mesmo do ideário de quem vive no ambiente rural. No
Brasil, ninguém que sobrevive da terra se identifica como “homem do
campo” quando perguntado sobre a ocupação ou profissão que exerce. As
respostas necessariamente cairão em produtor agrícola, agricultor,
trabalhador rural, patrão, pecuarista, boiadeiro, sitiante, peão,
tratorista, braçal, volante, boia-fria etc. De igual maneira, ninguém
diz que veio ou vai para o campo. Aqui no Brasil, o bom caboclo diz que
veio da roça, da fazenda, da lida, do sítio, dos cafundós, donde Judas
perdeu as botas, mas jamais diz que veio do campo.
Observem que, em contrapartida, expressões ligadas aos movimentos
sociais e que identificam os trabalhadores como camponês, campesino,
campesinato, estão fora do vocabulário da imprensa brasileira.
IX Conclusão
Este artigo se fez mais longo do que o planejado. Ao desenvolvê-lo,
percebemos que certos aspectos precisavam ser detalhados para a melhor
compreensão dos tópicos. Há de se crer que o escopo principal foi
atingido – a demonstração das incongruências dos argumentos de quem
defende uma escrita diferente em português para as palavras latinas campus et campi.
Neste trabalho, também consideramos demonstrado que a grafia “câmpus”
não se justifica em nossa língua e que campus também não é uma palavra
do nosso vernáculo em contraste com o seu equivalente campo, que é o
aportuguesamento indicado e correto.
Por outro lado, verificamos que há aspectos históricos que não podem ser
desprezados no uso dessa palavra latina para identificar o espaço
ocupado pelos prédios e mobiliários das universidades e faculdades.
Historicamente, não há equívocos em se usar campus et campi, como não há argumentos históricos convincentes para tais mudanças.
Tecnicamente, nesse estudo não se descobriu um apelo popular, ou da
literatura, para a mudança proposta. Os que propõem as novas grafias são
os manuais de redação de jornais, sem justificativas que se sustentem
na construção da língua. Infelizmente, parte da comunidade acadêmica já
encampou a proposta e defende, não sem equívocos, as novas grafias.
Por fim, ao se verificar como o caso é tratado em outros países,
gostaríamos de destacar algumas soluções inteligentes para o problema –
se é que ele existe no caso brasileiro. A Universidade de Coimbra
livrou-se de ter que declinar a palavra latina campus simplesmente adotando esse nome para a totalidade de suas instalações e dando o nome de polo para as subdivisões. Então, o campus da Universidade de Coimbra tem vários polos. Ou ainda, a solução encontrada pela Universidade de Bolonha, ao criar a expressão multicampus, que nada mais é do que um conjunto de campi. Nessas soluções, há a inteligência de não se espancar as línguas nativas e muito menos o latim.
José Fernando Nandé: é
graduado em Comunicação Social – Jornalismo – UFPR, pós-graduado em
Economia do Trabalho (UFPR). Tradutor, pesquisador e autor de vários
livros.
Bibliografia
CAMÕES, Luis de. Os Lusiadas, poema épico. Paris: Officina Typographica de Firmino Didot, 1819.
CEGALA, DOMIGOS PASCHOAL. Novíssima gramática da língua portuguesa. São Paulo: Cia Editora Nacional, 2007.
CHARLESWORTH, Martin Percival. Trade-routes and commerce of the Roman Empire. 1970: Cooper Squadre Publishers.
FURLAN, Oswaldo Antônio. Língua e literatura latina e sua derivação portuguesa. Petrópolis: Vozes, 2006.
JOLIVET, RÉGIS. Tratado de Filosofia I – Lógica Cosmologia. 1969, Agir, Rio de Janeiro.
LODEIRO, José. Traduções dos textos latinos. Porto Alegre: Editora Globo, 1960.
MARQUES, Amadeu. Dicionário Inglês-Português, Português-Inglês. São Paulo: Ática, 2007.
MENDES DE ALMEIDA, Napoleão. Gramática Latina. São Paulo, Saraiva, 2000.
MOURA NEVES, Maria Helena de. Em torno das grafias CAMPUS , CAMPUS E CÂMPUS. Site da Unesp: http://unesp.br/aci/sobre_campus_campi.php (29/03/2012, 15h35).
PRADO JÚNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1972.
VIZEU, A. &; CORREIA, J. A construção do real no telejornalismo: do lugar de segurança ao lugar de referência. In: VIZEU, A. A sociedade do telejornalismo. Petrópolis: Vozes, 2007.
-----------. Manual de redação e estilo de O Estado de S. Paulo. 3.ed. São Paulo: O Estado de S. Paulo, 1997.
Dicionários
-----------. Dictionnaire latin-français. Paris: Hachette et Cie, 1868.
-----------. Dicionário Francês-Português e Português-Francês. Rio de Janeiro, MEC, 1965.
-----------. Dicionário Latim-Português e Português-Latim. Porto, Porto Editora, 2006.
-----------. Dicionário Latino-Português. Rio de Janeiro, MEC, 1962.
Nenhum comentário:
Postar um comentário